sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Carta Quaresma 2010 - Superior Geral da Congregação da Missão



CONGREGAZIONE DELLA MISSIONE
CURIA GENERALIZIA

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Quarta feira de cinzas, 17 de fevereiro de 2010


A todos os membros da Família Vicentina,


A minha graça te basta, o meu poder te fortifica na fraqueza.


O tempo da Quaresma se abre novamente diante de nós e, para nos ajudar, como Família Vicentina, a entrar mais profundamente neste tempo de graça, proponho-lhes a seguinte reflexão.

Após a publicação de minha carta para o Advento, centrada principalmente sobre a paz como um aspecto importante da vida cristã, tive um diálogo frutuoso com uma amiga sobre a minha experiência na América Central como missionário. Esta amiga muito engajada com os pobres, considera-se cristã católica. Uma de suas características é que ela é a favor da revolução, inclusive da revolução armada, particularmente no e para os países em desenvolvimento que lutam para progredir no mundo de hoje. Nosso diálogo, evidentemente, continuou sobre a questão da paz e da não violência. Minha posição é totalmente contrária à revolução armada e mais aberta ao que eu considero como uma abordagem evangélica da revolução não violenta, aquela proposta por Jesus Cristo através dos diversos exemplos que Ele nos dá, de transformação da sociedade não pela força, mas pelo amor.

Esta pessoa amiga me enviou um artigo sobre a não violência, encontrado por acaso. Embora ela não esteja talvez inteiramente de acordo com o seu conteúdo, este artigo, no entanto, levou-a a pensar no valor da não violência no mundo de hoje. De minha parte, este artigo permitiu-me fazer uma reflexão mais aprofundada sobre a não violência em nossa tradição cristã e o exemplo da vida do próprio Jesus Cristo.

O autor desta curta reflexão sobre a não violência começa mostrando que nós fazemos parte de uma cultura que, historicamente, justificou o uso da violência. À medida que a história se desenvolveu, progrediu e tornou-se tão sofisticada com a utilização dos meios tecnológicos modernos na fabricação das armas, ela construiu um paradigma cultural que, de certo modo, põe em perigo a raça humana e toda a vida do planeta conduzindo-a à beira da extinção. Mas, ao mesmo tempo e paralelamente a esta proposição cultural vivida durante séculos, surgem novos modos de agir que começam a desmantelar a justificação dos métodos de violência, de todos os tipos de violência, e propõem que, na diversidade das expressões da vida humana, a vida em si mesma possa ser enriquecida ao invés de ser destruída. Em outras palavras, é possível construir um mundo no qual pessoas de meios e expressões culturais diferentes, possam aprender a viver juntas numa harmonia fundamentada na diversidade, ao invés da diversidade se tornar a justificação da violência e, portanto, da destruição.
Entre as diversas maneiras criadoras de resistir à violência no mundo de hoje, o autor destaca a fragilidade como um elemento essencial. Ele propõe, ao mesmo tempo, a força das dimensões horizontais na organização da sociedade como solução, em lugar das estruturas hierarquizadas. Em outros termos, que as soluções sejam buscadas de uma maneira circular, ao redor de uma mesa onde todos, inclusive os pobres e os marginalizados, tenham a possibilidade de expressar-se num plano de igualdade nas discussões.

Mais adiante, o artigo demonstra que a imagem do inimigo deve ser desconstruída, reconhecendo que aqueles que têm uma opinião contrária, podem também, estar preparados a contribuir de maneira construtiva na busca da verdade. Em outras palavras, todos aqueles que estão ao redor da mesa, embora suas opiniões sejam diferentes, possuem uma parte de verdade e podem contribuir na construção da totalidade da verdade. Nós, como cristãos, consideramos que a verdade se constrói pelos valores que descobrimos na riqueza da vida de Jesus Cristo. É evidente que a guerra, hoje, é uma maneira ilegítima de realizar a harmonia na sociedade humana.

Além disso, através da história, a humanidade dominou o planeta a tal ponto que agora sofre as consequências. A harmonia com a natureza é uma alternativa ao seu controle e à sua dominação.

Se nós esquecermos de cuidar de nosso planeta, é mais provável que os pobres sofrerão ainda mais. A conservação do planeta é um dos sinais dos tempos aos quais, nós, pessoas que vivem no século XXI, devemos responder como Família Vicentina. Para citar o papa Bento XVI, “hoje a natureza o grande dom de Deus está exposto a sérios riscos por opções e estilos de vida que podem degradá-la. A degradação ambiental torna insustentável particularmente a existência dos pobres da terra. A degradação ambiental torna insustentável particularmente a existência dos pobres da terra. É necessário comprometer-se a cuidar da criação, sem dilapidar os seus recursos e compartilhá-los de maneira solidária” (Ângelus de 27 de agosto de 2006 em Castel Gandolfo, antes da celebração do dia da terra).

O cuidado com a criação é também uma questão referente à mudança sistêmica. Um grande sistema difundido no mundo inteiro focaliza-se muito na eficácia e nos bens econômicos e não considera suficientemente o impacto de nossas escolhas sobre o planeta, em particular sobre os pobres. Seria bom que nós, como Família Vicentina, assumíssemos um compromisso de colaborar com outros organismos, em vista de mudar este sistema destruidor indo à raiz das causas.

Estes pressupostos são colocados em evidência como elementos implicados na transformação e reconstrução cultural de nosso mundo. Um elemento essencial a este fim é a não violência. Ela implica uma proteção sem condições da vida sob todas as suas formas, esta proteção sendo favorecida por ações concretas. Estas ações nos provocam a compreendermo-nos melhor em nossas relações humanas nos aspectos políticos, sociais e econômicos. Trata-se de compreender que, fundamentalmente como seres humanos, partilhamos com outros, este planeta que Deus gratuitamente colocou à nossa disposição.

Alguns consideram que a não violência é uma utopia, pouco realista. Nós, cristãos e discípulos de Jesus Cristo evangelizador e servo dos pobres, sabemos que tal não é o caso e que, em vários lugares do mundo, a não violência prova o seu valor.

Queridos irmãos e irmãs, a reflexão sobre a não violência faz parte da nossa tradição como católicos cristãos e se encontra no coração daquilo que a Quaresma significa para nós. Centramo-nos sobre a necessidade de mudar as nossas atitudes a fim de viver em plenitude a vida que nos foi dada na pessoa de Jesus Cristo por sua paixão, morte e ressurreição. No coração deste dom da vida nova se encontra a fragilidade.

Durante este tempo de Quaresma, meditemos sobre a fragilidade de Jesus Cristo e a nossa própria fragilidade, a fim de não considerá-la como uma limitação, mas antes como um meio de inaugurar uma vida nova para nós mesmos, para os outros e para o mundo no qual vivemos. A fragilidade de Jesus se expressa de maneira mais concreta quando Ele entrega o seu espírito depois da experiência de sua própria paixão antes e sobre a própria cruz. A carta de São Paulo aos Filipenses expressa uma profunda reflexão teológica no hino cristológico que nos diz que Jesus esvaziou-se de si mesmo humilhando-se a fim de nos fazer chegar à plenitude da vida na ressurreição. Antes deste dom total de si na cruz, Jesus mostra como a fragilidade ocupa o seu lugar na transformação da sociedade. Na véspera de sua morte, Jesus nos ensinou a maneira de ser e de agir. Lavou os pés de seus discípulos, um gesto que, em sua época, era realizado pelos escravos. Assim, Ele se tornou o servo dos servos.

São Vicente, em seus escritos aos co-irmãos e às Filhas da Caridade, nos convida a sermos indignos servos, buscando os lugares mais humildes. Esta reflexão de São Vicente de Paulo é retomada simplesmente, mas de maneira eloquente, no artigo do Padre Jean Pierre Renouard, o 5º tema proposto para a nossa reflexão como fazendo parte de nossa formação contínua durante a comemoração do 350º aniversário. No artigo do Padre Renouard intitulado “Quem é Jesus para Vicente”, ele cita São Vicente de Paulo, e reproduzi aqui uma parte desta citação:

“O que mais me impressionou do que foi dito… é o que se fala de Nosso Senhor, que era o mestre natural do mundo inteiro e não obstante se fez o último de todos, o opróbrio e a abjeção dos homens, ocupando sempre o último lugar em toda parte onde se encontrasse. Acreditai talvez, meus irmãos, que um homem é muito humilde e que humilhou-se muito quando ocupou o último lugar. Pois bem! Um homem humilhar-se-ia ocupando o lugar de Nosso Senhor? Sim, meus irmãos, o lugar de Nosso Senhor é o último” (Coste XI p. 137).

Há um lugar mais humilde a escolher, neste momento da história, do que o de estar a serviço dos pobres no Haiti? Dizem que os haitianos são um povo incrível cuja capacidade de resistir ao sofrimento foi várias vezes provada no decorrer da história de seu país, considerado o mais pobre entre os pobres do hemisfério ocidental. Hoje, depois do terremoto mais devastador já ocorrido depois de mais de 200 anos, eles estão mais necessitados. Fiquei edificado com a resposta dada pelo grupo da Família Vicentina a esta crise e tragédia no Haiti. Em várias reflexões que foram escritas sobre o que aconteceu no Haiti, falou-se que o mundo aproveitou a ocasião desta tragédia, que poderíamos considerar como a experiência mais horrível e mais terrível em termo de perda de vidas humanas, e a transformou em obra prima, uma obra da humanidade inteira, uma obra de nosso mundo de hoje, impulsionado pelo amor de Deus que foi derramado em todos os corações. A resposta dada a esta tragédia, bem como aquelas levadas a muitas outras, é certamente edificante e prova que mundialmente temos possibilidades. Como cidadãos deste mundo, podemos trabalhar juntos, colocando de lado as nossas diferenças para que o mais frágil de nós, beneficie da nossa atenção e que o amor lhe seja manifestado e oferecido. No espírito de São Vicente de Paulo e de Santa Luísa de Marillac, somos convidados a despojar-nos e a colocar-nos ao seu serviço.

Uma tal presença junto aos nossos irmãos e irmãs que vivem na pobreza em lugares como o Haiti, pode ser percebida como uma representação simbólica de Nosso Senhor Jesus ressuscitado. Ele se levanta no meio das sombras da morte e dá uma vida nova. Tais experiências já foram vivenciadas em muitos países do mundo onde a Família Vicentina se encontra presente. Lugares que, de outro modo, não teriam esperança, não encontrariam nenhuma motivação sem a presença dos discípulos de Jesus Cristo, evangelizando e servindo os pobres. Em situações como a do Haiti, onde muitas pessoas viram desaparecer o que elas consideravam como sendo sua segurança, é a presença de pessoas atenciosas e amáveis, que dedicam suas vidas a serviço dos outros, que permanece sinal de ressurreição, sinal de esperança e de vida.

Meus irmãos e irmãs, concluo esta reflexão sem terminá-la, porque espero que ela continuará por uma reflexão pessoal e uma partilha entre vocês. No centro de nossa fé cristã encontra-se a realidade da fragilidade da qual nasce uma vida nova. Que nós, discípulos de Cristo e em fidelidade ao seu chamado, reconheçamos a nossa fragilidade bem como a dos outros e promovamos uma vida nova pela não violência e a proteção de nosso planeta. Por nossa fragilidade damos uma resposta à fragilidade do mundo e à de toda a criação.

Nosso Deus, o Deus de Jesus Cristo, é o Deus da vida e o Deus do amor. Ele derrama continuamente este amor no e pelo dom de sua ressurreição que nós celebramos como o ponto culminante do tempo da Quaresma. Jamais esqueçamos que é a ressurreição que nos identifica. Somos um povo ressuscitado e o aleluia é o nosso canto. Deixemos ressoar o nosso canto e, como Família, cantemos junto com todos os nossos irmãos e irmãs, os pobres.

Seu irmão em São Vicente,

Pe. Gregory Gay, C.M.
Superior Geral



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