Apóstolos da Caridade, um testemunho sempre actual!
Celebramos, hoje, com júbilo e em acção de graças, o encerramento das festividades dos 350 anos da morte de S. Vicente de Paulo e de Santa Luísa de Marillac. Ambos, apóstolos ímpares da Caridade: o primeiro conhecido como o grande santo do grande século, pai dos pobres, e declarado por Leão XIII, em 05 de Maio de 1883, Padroeiro especial de todas as obras de caridade; a segunda, declarada por João XXIII, em 1960, Padroeira de todos os que se dedicam às obras sociais cristãs.
Ambos franceses, nascidos no final do século XVI, Vicente de Paulo em 1581, Luísa de Marillac em 1591 e falecidos em Paris, no mesmo ano, ele em 27 de Setembro, ela em 15 de Março. Foram duas vidas que se cruzaram na primeira metade do século XVII e se colocaram ao serviço do Pobre, qualquer que fosse o seu rosto, numa atenção e actividade constante contra a pobreza. Tal aconteceu, porque o encontro de Vicente de Paulo com o Pobre fora anterior, em 1617, na Paróquia de Folleville à cabeceira de um camponês. Foi este o sinal de que Deus se serviu para converter Vicente à causa do Pobre...
Carisma Vicentino, presente na Madeira
A partir daqui toda a sua vida gira à volta de um eixo: o Pobre. No mesmo ano, surge o primeiro fruto: as Confrarias da Caridade, as Senhoras da Caridade, que hoje chamamos a Associação Internacional das Caridades. Trabalham na nossa Diocese desde 1876, sempre ligadas ao Hospício D. Maria Amélia. Bem-hajam pelo trabalho socio-caritativo que realiza entre nós, desde essa data, junto dos mais pobres da nossa sociedade.
Para melhor realizar o serviço dos Pobres e os evangelizar, Vicente de Paulo reúne, em 1625, padres que, sem ser religiosos, aceitassem viver como religiosos. Estavam criados os Padres da Missão ou, como hoje são conhecidos entre nós, os Padres Vicentinos. Chegaram, pela primeira vez, à Madeira, em 1757 e por cá permaneceram 10 anos, no Seminário Diocesano, pregando retiros e em missões populares. O regresso dos Padres fez-se, depois, em 1874, ligados à Fundação do Hospício, mas também com um laço muito estreito ao Seminário Diocesano e às Missões populares. Desde então continuam presentes na nossa Diocese, como Capelães no Hospício e disponíveis para diferentes ministérios pastorais.
Em 1630, uma jovem pastora, Margarida Naseau, apresenta a Vicente de Paulo o projecto auspicioso de, com outras jovens, cuidar e servir os pobres sem remuneração. Estava aqui o embrião das Servas dos Pobres. Vicente de Paulo pede a Luísa de Marillac que oriente estas jovens... Nasciam em 1633 as Filhas da Caridade! Desembarcaram na Madeira em 1862 a pedido da Imperatriz D. Maria Amélia para assumir a Fundação do Hospício, onde se encontram ainda hoje. Mais tarde assumiriam o Refúgio de S. Vicente de Paulo, em Gaula, e a Fundação Santa Luísa de Marillac, no Caminho do Monte. Saudamo-las pela acção socio-caritativa que exercem entre nós junto dos carenciados, desde os mais pequeninos até aos mais idosos!
Embebido do espírito vicentino, Frederico Ozanam funda as Conferências Vicentinas em 1831 e, coisa admirável, em 1875, é fundada, na Paróquia de S. Pedro do Funchal, a 1ª Conferência madeirense e 2ª nacional! Hoje, os Vicentinos actuam em 39 das nossas Paróquias no contacto directo e pessoal com os mais pobres! Saudamo-los e auguramos-lhes, nos tempos de crise que correm, muita escuta e presença!
Ainda de espírito vicentino a Juventude Mariana Vicentina e as Filhas de Maria: ambas animam em diferentes paróquias da nossa Diocese, nos sectores que lhes são mais específicos, a vida das comunidades cristãs, difundindo a caridade que abrasava os corações de Vicente de Paulo e de Luísa de Marillac. Saudamo-las vivamente, também, pelo seu trabalho apostólico.
A prática da Caridade
Tanto a vida de Vicente de Paulo como a de Luísa de Marillac se centraram em torno da caridade e do Pobre, traduzindo para o seu tempo, mais pela acção do que pelo discurso, o Evangelho das Bem-aventuranças de Jesus Cristo (cf. Mt 5,1-12). Nas palavras do Profeta Isaías, eles foram sobre os montes os pés dos mensageiros que anunciam a paz, trazem a boa nova e proclamam a salvação (cf. Is 52,7-10).
A prática da caridade sem limites levou-os à prática do Reino de Deus, porque à medida que criavam hospitais, recolhiam crianças abandonadas, acolhiam jovens, matavam a fome às vítimas da guerra, eles estavam a trabalhar para unir as pessoas, a diminuir as diferenças entre elas, tornar a caridade uma realidade concreta.
Se, hoje, a caridade é tantas vezes mal compreendida, não estranharemos que a qualidade, que Vicente de Paulo lhe incutiu, fosse até reconhecida por ateus e por espíritos como o de um Voltaire, por exemplo. Michel Riquel chama-a o “realismo da caridade”, porque abarcava o ser humano na sua totalidade. Não se trata de simples beneficência, de uma caridade assistencial, porque Vicente de Paulo pensava sempre na dignidade do Pobre, por isso equacionava lucidamente caridade e justiça.
Caridade no sentido de que ela só é verdadeira, se for efectiva, solidária e interpeladora, sustentando que nem a justiça prevalece sobre a caridade, porque a pessoa precisa de ser atendida com amor, nem a caridade prevalece sobre a justiça, porque “Deus nos concede a graça de enternecer os nossos corações em favor dos miseráveis e de crer que, ao socorrê-los, estamos a fazer justiça...”
É por esta razão que ele ia ao encontro de todas as forças vivas da nação em favor do pobre e não se cansava de afirmar: “a caridade é inventiva até ao infinito” e ainda: “amemos a Deus, meus irmãos, mas com o suor dos nossos rostos e o esforço dos nossos braços”.
Causa do Pobre, a causa de Cristo
Tudo aconteceu em 1617 quando Vicente de Paulo se encontrou face a face com o Pobre. O Pobre converteu-o, tornou-se para Vicente de Paulo, sacramento de Cristo, mediação viva e expressão real do Senhor, lugar preferencial para o encontro com Deus sofredor e crucificado, isto é, ponto de partida e de chegada da sua reflexão e do seu agir espiritual.
A causa do Pobre tornou-se a causa de Cristo. Esta descoberta despoletou a fecundidade da vida cristã de Vicente de Paulo: “Vede como o principal para Nosso Senhor era trabalhar pelos pobres”; “Jesus Cristo não fez outra coisa no mundo senão servir os pobres”. Por esta razão, ele não hesitará em chamá-los “nossos senhores e nossos mestres”, porque são os pobres que nos dizem qual é a vontade de Deus, porque eles constituem a razão de ser das instituições vicentinas, configuram as suas origens, rectificam o seu presente e dinamizam o compromisso do seu futuro.
Se a caridade de Vicente de Paulo pelo pobre se enraíza tão profundamente no mistério de Deus, ele não cessa de afirmar que ela deve ser vivida concretamente no serviço prestado ao pobre, com respeito e devoção, para evidenciar a dignidade que lhe é devida, seguindo uma pedagogia libertadora, isto é, que o trabalho junto do pobre o leve a caminhar pelos seus próprios pés e o incite a que outros o façam também. São palavras suas: “Assim como o Verbo-Pobre foi enviado para encarnar em Jesus Pobre, assim os pobres são convidados a continuar a missão junto de seus irmãos pobres”.
Caridade e justiça, valores fundamentais
Trezentos e cinquenta anos nos separam de Vicente de Paulo e de Santa Luísa de Marillac. Vemos, ainda hoje, o número de pobres a aumentar, de tal modo que as Nações Unidas proclamaram 1996 o ano da erradicação da Pobreza; e agora é a vez da Europa declarar 2010 o ano da luta contra a Pobreza e exclusão social. O que evidencia que a Pobreza continua a estar longe de ser debelada e a mensagem de Vicente de Paulo de amor ao pobre e de luta contra a pobreza mantém toda a sua actualidade.
Num mundo globalizado como o nosso, cada um de nós é chamado a empenhar-se na causa da justiça, como valor evangélico fundamental. A caridade-justiça conduz-nos a um conjunto de atitudes e acções contrárias às daqueles que gravitam em torno dos interesses económicos, sobrepondo-os ao incomparável e excelso valor do ser humano que, em todas as circunstâncias, deve ser respeitado na sua dignidade fundamental, como pessoa que é.
S. Vicente de Paulo oferece-nos a lógica da partilha, da solidariedade, da comunhão, da dignidade humana, dos direitos do pobre. O Reino de Deus, que o mesmo é dizer o Reino das Bem-aventuranças, vai-se construindo com todos os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus. São estes, que estabelecerão entre si laços de fraternidade, e que poderão, na caridade e na justiça, dizer: Pai Nosso!
Funchal, 27 de Setembro de 2010
† António Carrilho, Bispo do Funchal
Fonte: Ecclesia
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